Dia 13 – O Dia dos Dias
O dia
começou cedo: 01:30 já era manhã... O caminhão, um Mercedes Benz L – 1313, que
me levaria à Lábrea, chegou de Porto Velho. Conforme combinado com o ajudante,
para “pagar” a carona – gentileza gera gentileza - fiz as vezes de chapa no
transbordo da mercadoria para o caminhão do Supermercado de Lábrea. Frutas,
legumes, laticínios, frios e embutidos: o calor da noite e do esforço era
amenizado pela refrigeração dos produtos. Com o adiantado da hora, não era
prudente seguir viagem. Mais um sinal da conspiração do Universo: viajar no
escuro da madrugada na amazônica é um risco que eu não queria, nem poderia
correr. Outra razão: não conseguiríamos atravessar o Rio Mucuí sem a luz do
dia: lá a energia é proveniente de um gerador que é desligado às 22:00. Além
disso, ainda havia mercadorias para carregar no caminhão quando o dia clareasse
e pessoas “normais” iniciassem o seu trabalho.
Às quatro
horas da manhã eu já estava de pé. Arrumado para partir. Agora era esperar a
carona e a abertura da lanchonete para um café da manhã reforçado para aguentar
a viagem. Eu não sabia quando seria minha próxima refeição.
Com a
“comitiva” reorganizada, partimos em direção a uma distribuidora de Bebidas
para o carregamento de refrigerantes e cerveja. Um abastecimento estratégico para
o carnaval que se aproximava. De sede não morreríamos.
Por volta
das 10:00 iniciamos a viagem em direção à Lábrea. Um pequeno trecho de asfalto
e logo a poeira nos deu uma falsa impressão que a viagem seria enfadonha e meu
projeto de mostrar as dificuldades de trafegar pela BR – 230, no Inverno
Amazônico, frustrado. Mas aqui a primeira impressão não é a que fica, tudo,
tudo pode ficar e ficou bem pior. Depois de algumas horas começamos a trafegar
numa estrada enlameada e altamente escorregadia. Todo cuidado era pouco e o
Caminhoneiro dirigia com braços de ferro e nervos e aço.
Até a ponte
sobre o Rio Assuã, em Canutama, a viagem foi relativamente tranquila com um
único incidente: uma escorregada para fora da trilha, formada pela passagem dos
caminhões que nos precediam, que obrigou uma parada para reconduzir o caminhão
à trilha, cavando-se com golpes de enxada, a lama que estava abaixo das rodas
traseiras do caminhão formando um caminho seguro para voltar a trilha e evitar
o atolamento na margem da rodovia que era, como constatamos, um verdadeiro poço
de lama.
Estávamos
nos aproximando da Travessia do Mucuí quando o céu começou a escurecer com
pesadas nuvens de chuva. Agora a luta era contra a estrada e o tempo, para chegarmos
às margens do Mucuí antes da chuva. O som dos trovões abafava o ruído do motor.
A tensão de todos na boleia do caminhão era visível. Atravessar o Mucuí seria
fácil, o trecho mais difícil estava além. Não sabíamos o que nos esperava.
Chegamos às
margens do rio no momento que a chuva dava seus primeiros sinais. Montes de
lama revirada pelas rodas dos caminhões e de máquinas pesadas - que tentavam
minimizar os efeitos do inverno sobre a estrada - se acumulavam nas margens da
estrada, deixando uma estreita trilha de aproximação para embarque na balsa.
Balsa? Sob a chuva, raios e trovões, meus olhos alcançaram uma verdadeira
armadilha de raios. Quatro torres de aço apontavam para o céu que desabava
sobre nossas cabeças. As torres que sustentavam as rampas de embarque pareciam
braços estendidos aos céus clamando pelos raios. A travessia seria manobrada
pelo próprio caminhoneiro e seus ajudantes. Ajudei no posicionamento da balsa
para o embarque do caminhão.
Esta
operação merecia ser filmada, mas faltou-me a ideia na hora. Com a balsa
ancorada na margem lamacenta, o caminhão executou uma manobra rápida e colocou
as rodas dianteiras sobre a balsa. Neste momento, com o peso do caminhão, a
balsa escorregou rio adentro, forçando o caminhoneiro a acelerar para concluir
a manobra de colocar todos os eixos do caminhão sobre a balsa. Depois disso,
iniciou uma arriscada manobra para posicionar o caminhão no meio da balsa e
balancear o peso para evitar tombamentos. Num movimento de pêndulo o
caminhoneiro “dançou” sobre a plataforma escorregadia até posicionar
satisfatoriamente o caminhão sobre a balsa. O próximo passo foi aproximar a
voadeira, equipada com um potente motor, para fazer a atracação e o reboque da
balsa até a outra margem.
A Chuva não
dava tréguas. Com tudo pronto, começou o embarque dos “passageiros” para
iniciar a travessia. Neste momento eu congelei. Por alguns segundos, descalço,
todo molhado, ouvindo a chuva, batendo na aba do meu boné, e os trovões, dei
dois passos e embarquei. Aqui eu esqueci, por alguns instantes, do meu medo por
águas profundas: estava apavorado com a possibilidade de ser eletrocutado no
meio da travessia. Fixei meus olhos no rastro do motor e segurei firme na
carroceria de madeira do caminhão.
No primeiro
terço da travessia o cabo que segurava a popa da voadeira à balsa se soltou. Um
susto um aviso que não foi bem interpretado pelo barqueiro, que rapidamente
amarrou novamente a voadeira e acelerou com força para empurrar a balsa na
correnteza, que já dava sinais de ficar à deriva. Após uma veemente reclamação
do barqueiro ao ajudante que amarrara a voadeira à balsa, continuamos a
travessia, mais tensos do que nunca. Para amenizar as coisas, a chuva dera uma
trégua. Tudo parecia que terminaríamos a travessia com tranquilidade, mas no
último terço da travessia o pior aconteceu: o cabo que fora amarrado pelo
barqueiro rompeu-se violentamente, no momento em que a balsa manobrava para
atracar na outra margem, jogando o barqueiro nas águas escuras do rio. Gritos.
Após alguns segundos ouvi o barqueiro gritar que estava bem; um dos ajudantes
mergulhou para recuperar a voadeira que afundava rebocada pela balsa à deriva.
Neste momento, olhei para frente e vi o caminhoneiro correndo para pular em
outra balsa, de madeira, que estava ancorada na margem que pretendíamos
atracar. Larguei a carroceria do caminhão e corri atrás dele. Enquanto corria,
vi que ele estava jogando uma corda para a margem, para que a balsa fosse
rebocada, no braço, pelos homens que estavam na margem e observavam tudo. Pulei
para a balsa de madeira, pulei para a margem, segurei a corda e ajudei a
recuperar a balsa carregada com o caminhão.
Como a
balsa não atracou no ponto predeterminado e seguro, a operação de desembarque
seria outra manobra bastante arriscada. O risco de afundar caminhão e carga nas
profundezas das águas era enorme. Tão grande quanto à maestria e a raça do
caminhoneiro na condução das manobras para reposicionar a balsa, usando a força
do caminhão, e vencer o atoleiro na margem. Após alguns minutos de manobras,
roncos do motor e gritos das pessoas para posicionar e guiar o caminhoneiro no
melhor trajeto, o caminhão voltou para a estrada são e salvo.
Estava na
hora de nos reorganizarmos para seguir viagem. Cinco homens apinhados na boleia
do Mercedes Benz L – 1313 com seu motor de dezenas de cavalos resfolegando para
abrir caminho nos atoleiros que estavam a nossa frente: vencemos a “Batalha do
Mucuí”.
Fizemos
mais uma parada para um último carregamento de carvão. No Mucuí havia vários
veículos parados esperando tempo melhor para seguir viagem. Nesta parada, nosso
contingente de “passageiros” aumentou. Os ajudantes foram para a carroceria e
os caronas ficaram na boleia com o caminhoneiro. Seguimos viagem, chegaríamos
à Lábrea ainda neste dia. Os atoleiros, a tempestade que caiu em boa parte do
caminho, árvores que precisaram ser arrastadas para fora da estrada, muita
lama, todos nós encharcados, enlameados, cansados, com fome, mas estávamos
tranquilos: o pior havia passado. Em certo ponto, ajudamos um veículo atolado e
o rebocamos até o último trecho da viagem, já com estrada em melhores
condições. Minhas expectativas de mostrar as dificuldades de trafegar na BR –
230 na pior época do ano: o Inverno Amazônico, não foram frustradas... Tudo
aconteceu num só dia. Mais um sinal de conspiração: eu chegaria ao meu destino
com todos os meus objetivos alcançados!
Chegamos a
Lábrea por volta das 21:00 foram 11 horas para vencer 215 quilômetros; as 21:35
eu estava na frente da Catedral de Lábrea junto ao letreiro com o nome da
cidade e registrava minha chegada, minha vitória...
BANZAI!!!
BANZA!!! BANZA!!!
BANZAI!!!
BANZA!!! BANZA!!!
BANZAI!!!
BANZA!!! BANZA!!!
Depois de
um dia extremamente desgastante, mental e fisicamente, nada melhor que ser recebido
com um belo sorriso de boas-vindas. O dono do primeiro hotel que entrei para
colher informações para o primeiro pernoite em Lábrea, me recebeu,
literalmente, de braços abertos. Não havia razões para procurar outra opção,
por melhor que fossem as condições, nada substituiria aquele sorriso.
O Dia dos Dias, o Dia D do Rally M+is - Transamazônica! Neste dia fiz
parte de uma Equipe Vitoriosa. Todos deram o máximo de si. Neste ponto é
possível imaginar a admiração explícita que senti por esses homens. Uma enorme
admiração pelos feitos desse dia, pelo reconhecimento da sua rotina de trabalho
do dia-a-dia, suponho eu, sem reconhecimento, que justificaram sem sobra de
dúvidas minha homenagem personificada no Caminhoneiro João. Admiração que me
faria, sem hesitação, passar por tudo isso mais uma vez, não pela aventura, não
pela adrenalina, não mais para vencer meus medos, mas, simplesmente, pelo
prazer de estar lado a lado com eles.